O confronto China x EUA sobre excesso de capacidade global

O confronto China x EUA sobre excesso de capacidade global

A China sinalizou nesta semana que poderá iniciar negociações ‘sérias’ com os Estados Unidos quando Donald Trump definir claramente o que quer. Também quer ver como outros países responderão à pausa de 90 dias na aplicação das tarifas impostas por Washington.

Certo mesmo é a dificuldade à frente numa negociação mais ampla entre as duas maiores economias do mundo, sobretudo envolvendo a questão de subsídios bilionários para suas indústrias. Em debates esta semana em Comitê de Subsídios da Organização Mundial do Comércio (OMC), o tema causou um confronto acalorado envolvendo Pequim, Washigton e vários outros membros.

Embora reconheçam que todos os membros da OMC usam subsídios até certo ponto, os Estados Unidos acusaram os amplos subsídios estatais da China de serem os únicos responsáveis pelo persistente e prejudicial excesso de capacidade global. Alegaram que esses subsídios, que vão de terras e eletricidade baratas a financiamento em larga escala, aumentam artificialmente a produção em setores como aço, energia solar, veículos elétricos e produtos químicos muito além da demanda doméstica ou global. Esse excesso de capacidade inunda os mercados internacionais, prejudica os concorrentes e distorce o comércio, prejudicando tanto as economias desenvolvidas quanto as em desenvolvimento, insistiu a representação americana.

Conforme fonte com acesso ao debate fechado, os EUA citaram um estudo do Rhodium Group de 2022 mostrando que, em 2019, os terrenos para uso residencial na China foram vendidos por cerca de 10 vezes o preço dos terrenos destinados para uso industrial. Um artigo do Wall Street Journal menciona que empresas listadas nas bolsas de valores de Shenzhen e Xangai declararam mais de US$ 33 bilhões em subsídios governamentais em 2023, um aumento de 23% em relação a 2019. Mais de 99% das empresas listadas na China receberam subsídios.

Washington mencionou fechamento de fábricas e perda de empregos em países como África do Sul, Chile, Índia e EUA, ‘onde as empresas não podem competir com as exportações chinesas com preços baixos’. E pediu aos membros da OMC que tomassem medidas coletivas para defender seus mercados e ‘manter um sistema de comércio global justo’ – algo que, vindo dos Estados Unidos no momento trumpiano, parece algo bem humorado.

Na mesma linha dos Estados Unidos, o Reino Unido reclamou que subsídios, especialmente da China, que distorcem os mercados, reduzem artificialmente os preços e ameaçam a concorrência justa e o desenvolvimento industrial em todo o mundo. Exemplificou com o setor solar, onde a China produz 190% da demanda global e domina 86% dos suprimentos globais. Para os britânicos, é necessária uma maior diversificação da cadeia de suprimentos para garantir a estabilidade econômica global e uma transição ecológica dita justa.

A União Europeia também acusou principalmente a China por excesso de capacidade global, em grande parte impulsionado por subsídios, que afeta as economias desenvolvidas e em desenvolvimento. Também citou um relatório da Rhodium de 2024 que mostra a fraca demanda interna da China e o crescente superávit comercial, argumentando que o excesso de capacidade da China decorre de uma intervenção estatal não transparente e em larga escala, e não da concorrência de mercado.

Para o Japão, embora os subsídios tenham seu valor nas políticas públicas, geralmente apoiam empresas não lucrativas, distorcendo os mercados e prejudicando os países em desenvolvimento. Para a Austrália, ao contrário das flutuações temporárias, o excesso de capacidade persistente - especialmente em setores como o do aço - é sustentado por intervenções que não são de mercado.

O Canadá insistiu que ‘subsídios governamentais injustos’ distorcem o comércio e podem desencadear uma corrida global por subsídios que prejudica a todos, especialmente as economias com recursos limitados.

Conforme relato de participante, o Brasil defendeu um diálogo multilateral e transparente para lidar com o excesso de capacidade, alertando que medidas unilaterais pioram as distorções comerciais. Mostrou preocupação com o impacto dos subsídios indiscriminados - especialmente os subsídios verdes - sobre as condições de mercado e enfatizou que os países em desenvolvimento enfrentam desvantagens devido ao espaço fiscal limitado e à exposição à concorrência e às barreiras comerciais turbinadas por subsídios.

Em reação, a China argumentou que o excesso de capacidade industrial está sendo politizado e mal utilizado como pretexto para ações protecionistas destinadas a conter o crescimento chinês. Defendeu a competitividade de seus novos setores de energia e tecnologia, atribuindo seu sucesso à inovação e às forças do mercado. Pequim considera que as flutuações na oferta e na demanda são uma parte normal dos mercados globais, influenciadas por fatores como preferências do consumidor, eventos geopolíticos e mudanças tecnológicas. Disse que que suas exportações em larga escala refletem a vantagem comparativa e se alinham às práticas comerciais globais observadas em outros países, como os EUA e o Japão.

Exemplificou que os EUA exportaram grandes quantidades de semicondutores, especialmente chips mais avançados, e em 2021, de acordo com dados do Departamento de Agricultura dos EUA, exportaram mais da metade de seus grãos, sementes oleaginosas e produtos de carne. E que o Japão produziu 8,57 milhões de veículos em 2023 e exportou 4,17 milhões de veículos, representando quase 50% de sua produção.

Para a China, o Comitê da OMC não deve perder tempo com a questão do excesso de capacidade. Sugeriu que os membros se concentrassem na verdadeira questão do unilateralismo e do protecionismo, que para Pequim é o uso de "tarifas recíprocas" pelos Estados Unidos. Acusou os EUA de violar repetidamente o princípio fundamental de não discriminação da OMC, rotulando-o de “violador de regras” e “manipulador de padrão duplo”. Alertou que o choque tarifário imposto por Trump perturba o sistema de comércio internacional e representa uma séria ameaça às economias vulneráveis, que poderiam enfrentar consequências devastadoras, inclusive crises humanitárias. Para a China, essas políticas são uma forma de intimidação econômica com o objetivo de revitalizar as indústrias nacionais às custas da equidade do comércio global.

A delegação dos Estados Unidos replicou defendendo o Chips Act e suas tarifas, afirmando que não se desculpariam por proteger suas cadeias de suprimentos e responder ao que chamaram de “um problema criado pela China”, ou seja, o subsídio e o domínio da China em setores importantes, como o de semicondutores. Os EUA alegaram que a China detém mais de 50% da participação no mercado global de 600 produtos, alertando sobre os riscos à segurança econômica e as vulnerabilidades da cadeia de suprimentos.

Justificando as tarifas com base em leis de emergência nacional, os Estados Unidos disseram que enfrentam uma “falta de relações comerciais recíprocas” e que as ações foram tomadas com base na exceção de segurança nacional da OMC. A delegação americana ridicularizou o apelo da China por “estabilidade” como um disfarce para sua ambição de dominar as cadeias de suprimentos globais.

No prosseguimento dos debates no Comitê da OMC, ficou evidenciado mais uma vez a dimensão do tema de subsídios industriais no comércio global. A China de novo atacou investigações anti-subsidio dos EUA sobre células fotovoltaicas cristalinas (o tipo mais comum de células solares encontradas em painéis solares). Criticou veementemente a determinação final do Departamento de Comércio dos EUA (DOC) em suas investigações de subsídios transnacionais envolvendo Camboja, Malásia, Tailândia e Vietnã - especialmente em relação à taxa de subsídio sem precedentes de 3.496% imposta às empresas cambojanas. A China considerou esse valor economicamente implausível e uma violação das regras da OMC.

Argumentou que os EUA extrapolaram sua jurisdição, classificaram erroneamente empresas privadas como órgãos públicos, aplicaram erroneamente os padrões de referência e abusaram do uso do Adverse Facts Available (AFA).

De seu lado, a União Europeia criticou fortemente a China por lançar três investigações de defesa comercial sobre as importações de determinados produtos agroalimentares originários da UE desde o início de 2024, incluindo uma investigação antissubsídios sobre produtos lácteos. Considera que a investigação é baseada em "alegações questionáveis e provas insuficientes".

Em resposta, a China declarou que a investigação foi iniciada de acordo com a legislação chinesa e as regras da OMC.

Foi a vez de a China criticar medidas de direitos compensatórios (CVD) da União Europeia sobre os veículos elétricos chineses, chamando a investigação de discriminatória, politicamente motivada e inconsistente com as regras da OMC. Ela acusou a UE de práticas injustas. A China acusou a UE de ter fabricado ou descaracterizado programas de subsídios e calculado erroneamente as margens de subsídios - por exemplo, atribuindo subsídios destinados a outros tipos de veículos somente a veículos elétricos. A UE respondeu que age em acordo com as regras da OMC.

Em geral, os países na OMC tem pouca disposição de mostrar o valor de seus subsídios. Até o momento, 82 membros - representando cerca de 50% dos membros - não apresentaram notificações de subsídios para 2023. Outros 82 membros não fizeram a notificação para 2021 e 70 membros não informaram sobre seus subsídios para 2019. Enquanto isso, quem pode continua turbinando suas empresas com subvenções.

Fonte: Valor
Seção: Indústria & Economia
Publicação: 02/05/2025